sexta-feira, 22 de maio de 2009

TV


Ela está ali. Em cima da cadeira. Quebrada. Olho pra ela e parece torta, empoeirada, inútil. Mas nesse elefante branco parado em minha varanda, vejo meu reflexo. Vejo meus dedos deslizando pelo teclado. A fraca luz da luminária não alcança as palavras que dela estão saindo.

Milhões de quadradinhos estão ali naquele momento, desligados, mas estão me vendo. Estão observando cada movimento meu, cada olhar desconfiado para o lado, cada expiração cansada.
Ela é o porto dos mosquitos barulhentos, das formigas corriqueiras, é a porta revistas velhas da casa.

As manhãs


A rotina do ônibus cheio, do calor, das pessoas indo trabalhar, o vuco-vuco de gente, de pernas e braços suados e cansados. Disso não sentirei saudade. Porém são essas pessoas que estão ao meu lado quando o azul ou o verde do mar me arrebata pela janela do coletivo. Aquela areia castanha, tão pequenos grãos de vida. Olho e sinto as histórias e os amores que ali viveram, vivem e viverão. E toda aquela imensidão de pureza, testemunha fiel e eterna do cotidiano vazio e exausto.

Pelo pequeno quadrado vejo quão grande é a vida, afinal não é a única imagem a ser admirada. Mas, certamente, essa ficará para sempre em mim. O mar, a areia, o muro que tenta separar a realidade do paraíso. Ali ganho força para seguir o caminho do meu futuro, o caminho para o lugar onde construirei a mais bonita das imagens: o sonho. O meu sonho. A minha vida.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Por entre ruídos


Habituei-me a sentir a saudade do amor que nunca tive.


Recordações dos momentos que não vivi.

O peso do silêncio daquela que jamais me encostou as mãos.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Fez-se primavera


Já beijei sorrisos, já beijei dentes
Já beijei lágrimas e castigos
Amei, amo, amarei
Não como a primeira ou a ultima
Mas como a única vez


Vez que amanheceu inverno
E anoiteceu frondosa primavera
Ensolarada, perfumada, colorida
Primavera de girassol
Que é sol e que faz girar


A primavera do impossível
Que faz da noite, luz

Não, não da que ilumina
Mas da que brilha, um brilho d´alma


De corações que não batem no mesmo rítimo
E sim no mesmo compasso
Sinta, pois como te sinto primavera
Inverno algum fará chover.



Eu te amo!!!


Escrito por: Manoel Neto

quarta-feira, 22 de abril de 2009

O movimento do silêncio


Passearam de bicicleta pelas ruas abandonadas do subúrbio. Depois de meia hora ele pediu que voltassem para casa, pois o sono já estava roubando suas forças. Ao chegar, seus corpos banharam-se deliciosamente nas águas frias do inverno.
Conversavam descontroladamente. Jantando, cada garfada era intercalada por um riacho de palavras que se perdiam a cada nova mastigada.
- Vou dormir. Disse ele.
- Você sempre sente sono quando está comigo. Desabafou.
Neste momento o silêncio fez-se mar, afogando toda e qualquer palavra. Ele não disse nada. Apenas um olhar que invadiu o corpo dela como um arrepio.
Entrou no quarto, fechou a porta com cuidado que não deu para ouvir o ranger que tanto os incomodam. Parecia que nada havia acontecido.
Ela lavou os pratos como todos os dias. Era, talvez, o momento de deixar junto com a água a raiva descer ralo abaixo.
Enquanto ela estava no sofá, ele foi até a sala, pegou um CD e voltou para o quarto. Tudo em fração de segundos. Desta vez, apenas encostou a porta.
O volume alto que soava do quarto a conduziu até lá. Deitou-se ao seu lado, mas de costas para ele. Quieta, conseguia ouvir sua respiração inquieta, seu corpo acordado e sua voz baixa cantarolando. Talvez desejasse adormecer.
Depois de muitos movimentos, ela percebeu que ele já não estava mais de costas. Com uma coragem envergonhada, virou-se e ficaram frente a frente. Ela o olhou intensamente, provocando o despertar dele, como o magnetismo de um ímã. Abrindo os olhos, ele se assustou com a expressão que estampava o rosto dela. Então fechou os olhos. Ela já não mais conseguia. Ele abria e fechava. Abria e fechava. Seus olhos não resistiam mais.
Ficaram se olhando durante longos minutos. E quando ela raramente fechava, sentia que ele a observava, esperando o instante em que novamente trocariam sutilezas com o olhar.
Os olhares foram ficando cada vez mais impetuosos. O calor dos corpos difundia-se no quarto, substituindo o frio que antes havia.
A perna dela lentamente foi encostando-se na dele. Seu pé deslizava na perna grossa e cabeluda como se estivesse descobrindo algo desconhecido.
Sem resistência, a perna dele se enroscou na dela. Quatro pernas pairando no ar como tentáculos de um só polvo.
Aos poucos pernas e pés iam tocando outras partes do corpo, explorando cada pedaço de carne, cada parte de desejo.
Ela tentou tocar no seu rosto e ele fugiu.
Ficaram feitos gato e rato, fugiam do outro em cima da cama que era naquele momento um tabuleiro. Duas peças jogavam eroticamente com seu desejo.
Depois de perdas e ganhos, empataram num beijo que era apenas parte do jogo.
Vai... Vem... Vem... Vai... E o CD tocou mais duas vezes.
- Vou dormir. Disse ele.
- Boa noite meu bem.

De costas para o outro dormiram levemente. De tabuleiro a cama voltara a ser um leito de amor.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Uma certa viagem


Meia noite. As estrelas brilham no céu. O vento assobia a melodia da madrugada. A Maria fumaça segue em frente. Meia noite.
Por entre os corredores: silêncio. Braços e pernas desconhecidos tocam-se inocentemente com o balançar dos vagões. Pessoas cansadas à espera do acaso.
Uma mulher, jovem, de bustos fartos e boca rosada, fuma incessantemente...Um cigarro após o outro...E a fumaça vai embora pela janela de onde nada se vê.
Ela não se move. Fica parada a olhar para o horizonte. E se não fosse pelo movimento do braço ao levar o cigarro à boca, poderíamos pensar que se tratava de uma boneca: de tão bonita, de tão quieta, de tão muda e tão suave. Uma boneca.
Muitos dormiam. Inclusive o boticário Ferraz. Esse, um homem mais velho, por volta dos seus 50 anos. Cabelos grisalhos, barba grande, bigodes e sorriso encantador.
Estavam sozinhos ali. Ela não dormira durante toda a noite. E de tanto observá-la, o boticário acabou por adormecer. Era confuso observar uma linda jovem que mesmo estática possuía alguma grandeza de movimentos. Era uma ansiedade descontrolada. Cada cigarro parecia a possível queima de um pensamento.
Passadas algumas horas, o boticário acorda e surpreende a jovem que se assusta com o despertar agressivo daquele homem que ela acabara de descobrir. Ainda não o tinha visto. Era como se estivesse sozinha nesta viagem.
Ao olhar para ele, ela deixa cair o cigarro. Parece que finalmente algo desviara sua atenção: o sorriso de um homem. Uma boca grossa, morena, dentes grandes de um predador. Bastou que ele entreabrisse os lábios para que ela, sem nenhum pudor, passasse para o lado do homem que despertara sua atenção. E seu desejo.
Olhou para os lados e viu que todos dormiam. Sentiu-se mais uma vez sozinha naquele trem. Mas agora ela não estava só, estava a sós. Sem nenhuma demora arrancou do boticário um beijo que o fez paralisar. Beijaram-se por longas horas...Até que o dia amanheceu.
Constrangido o boticário diz:
- Senhorita...Desculpe-me...Mas...Como se chama?
- Desculpe-me senhor! Ela sorri. Tenha um bom dia!
Ela pega sua bolsa, despede-se com um adeus breve e um sorriso sedutor. Ele ameaça ir atrás dela, porém se sente repelido por aquela beleza que só conseguira ver ao nascer do dia.
Quando recuperou o fôlego, sentou-se novamente e percebeu que ela havia esquecido uma caixa. Ele abriu e viu que eram seus cigarros que tanto os acompanharam durante a noite.
Por um segundo pensou em entregá-la pela janela. Mas Angélica já havia desaparecido.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Busca


Dona Só. 67 anos, viúva. É o que todos apostam. Tem cabelos ruivos, com cachos nas pontas. Pele branca, repleta de sinais no colo, olhos sem rumo e boca cerrada.

Vive sozinha num apartamento com vista para o mar. Não fala com ninguém, a não ser com uma estátua que embeleza sua sala.
Dona Só sai todas as tardes, sempre no mesmo horário, às 16:45, para caminhar na areia cinzenta da praia do Sossego. Ela caminha de cabeça baixa, cabelos presos e sempre, sempre com a mesma roupa.
Todos os vizinhos e transeuntes fitam os olhos curiosos nessa senhora que ninguém sequer sabe o nome. Todos a chamam de Dona Só. Foi uma maneira de aproximar ela da realidade cotidiana e da vida de cada um. Ela faz parte das conversas nas mesas de jantar, nas rodadas de dominó, nos bares...
Passados 35 minutos, Dona Só volta em direção ao prédio que mora. Entra, faz com a cabeça para o porteiro e sobe pelas escadas. Não, ela não mora no primeiro andar. São cinco lances de escadas que separam o hall do prédio do seu apartamento.
Como em um ritual, ela apaga as luzes, acende um incenso, liga sua vitrola herdada do pai e ouve Paulo Vanzolini cantar sua Ronda. Assim ela faz todos os dias. O mesmo horário, a mesma roupa, o mesmo ritual. Há sete anos ela vive assim.
Depois de um banho de banheira, ela senta na sua varanda, olha as ruas movimentadas e lembra da sua juventude agitada, que contrasta com seu presente mórbido e curioso. As luzes da cidade se apagam e apenas ela não dorme.
O que ilumina agora é a ponta do cigarro preto que ela não deixa apagar.